terça-feira, 18 de dezembro de 2012

O gato e a janela

A Janela - José Boldt



















Temos tempo,
o céu se mistura à janela do quarto.

Temos tempo,
acarinho o gato na nossa cama.

Temos tempo,
minha mão cabe na sua instantaneamente.

Temos tempo,
para costurar lençóis puídos e afagos longos,
para embaçar os olhos e medir o medo.

Temos tempo,
guardamos a joia dos dedos famintos.

Temos tempo,
provamos as horas infinitamente.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Preta, luto.
















Puta preta parida.
Preta até a raiz dos brancos.
Luto.
E quem tira essa escuridão do meu colo?
Meu filho preto?
Luto.
Puta preta parida
Pranteia a puta que o pariu.
Luto.
Escava teus pelos.
Rosna dentes à mostra.
Morde a carne alheia
e quebra os próprios ossos em oferenda.
Luto.
O bico do peito a céu aberto
Luto.
A pele morta a comer os vermes.
Luto.
A mão estéril a procurar abrigo.
Luto.
Trepo em manhãs de inverno.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012
















O silêncio daquela mata era da casa de alguém.
Cheirava uma presença inacabada.
O silêncio daquela mata era a casa de alguém.
Vivo, habitado e fresco.
Tirei os sapatos para não impor àquela terra outros caminhos.
Folhas escuras apodreciam à minha passagem, sem perderem o viço.
Fada gorda de pés pequenos e leves,
mal tocavam o chão.
A lama envolveu os pés machucados
à flor da pele.
Quando morremos brotam flores da nossa pele.
A pele real é rosa carmim.
O rio crescia nos meus ouvidos e eu descia para recebê-lo em minhas pernas.
O rio. O buraco na rocha. O sexo da montanha.
(Como falta a às palavras!)
Escorria-me desfeita entre as pedras.
Era uma vez.
(silêncio)
Sentia a ausência do mundo no meu corpo.
E nesse tanto que faltava
ainda havia o resto de alguém.
Mesmo ido(a).

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Vidro



Homens pequenos vivem engarrafados,
mensagens à deriva.

Decifra-me ó Porto Seguro,
me salva Terra!
Ancora-me os sentidos.
Só se pode andar sobre o imobilizado,
permanescente.

Navega homem de vidro:
vai partir.


terça-feira, 17 de abril de 2012



Todo dia é pequeno,
apodrecendo sobre montes de roupa suja.

Que noite de mínimos orgasmos. Ínfimas mãos. Inquebrantáveis.
Todo cheiro pequeno cheira mal.

Há fumaça nos olhos de cegos. Que refresco.
Quem olha pequeno é rei na terra imunda.

Tens sorte de ser pequeno.

terça-feira, 10 de abril de 2012















Minhas unhas pretas da tua pele.
Arrancaria cada uma delas se a dor fosse sua.

Minhas unhas secas pela tua carne.
Cortaria toda ela se a morte fosse minha.

Minhas unhas quebradas nos teus ossos.
Cavaria o corpo pela promessa de vivalma.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Presente de Alice


Tenho pra você
um presente
muito sério
e adiantado no tempo. 

É de você receber
e é de mim o medo
de como vai receber.

É de você
antes de ser pra você
e é de mim também.

E se é seu
não posso dá-lo a você.

Meu amor
a vista que tenho de você
feliz...

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Minha mãe do céu


















Cheiro de roupa passada a ferro.
Como se do ferro nascesse a verdadeira ternura das mães.
Essa quentura que abranda o sono. O abraço.
A cama foi purificada agora.
Apenas o silêncio do algodão sob a pele.
Manhã finalmente limpa.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Outro Carnaval

 
Fantasia
me cobre com teu
Carnaval.


Alegria
quem te viu já não enxerga,
é o fim da festa.


Mente fada madrinha,
encanta-me!
Meu olho está borrado.


A rua é alta
e já não consigo subir.
Circulo nas baixezas, nas porcalhadas
que cheiram mal e soam bem.


Quem tem ouvido que ouça.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Cerca viva















Acarinhei a cerca de madeira.
Liquens, fungos floridos,
Uma textura inédita,
estranhamente macia.
Quase esqueci das farpas.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

A festa


























Os sentimentos flutuam como balões coloridos
em uma festa sem dono.
Tentamos alcançá-los para presentear nossas crianças.
Alguém chora escondido no banheiro.
O esconde-esconde traz sempre a surpresa de um novo encontro.
Rodamos, lembrando antigas cirandas
sempre que esquecemos de inventar novas brincadeiras.
O cansaço rouba o som dos sorrisos
e também a letra de qualquer assunto.
Tateamos o calor um do outro,
aspiramos essa candura,
e sopramos esperanças impronunciáveis à nossa volta.
Sobre esse sopro caminhamos agora.
De mãos dadas.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Ode à Santa Teresa



















Olho a paisagem onde envelheci.
Estou muito velha agora.
Minha pele, de tão marcada,
já não inspira castigos.


Santa Teresa me olha com benevolência
e massageia meus pés
as suas ruas.
Ela fala em línguas estranhas,
mas seus silêncios não me enganam.


Ah, Teresa!
Abre as janelas sobre a minha vida.
Esconde tua irmã em becos seguros.
Mostra-me por onde subir ao santíssimo céu.


Santa Teresa dos Homens,
não me atire a primeira pedra.
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